Existem pessoas cuja excentricidade, excesso de franqueza, ou seja, o exercício de pensar em voz alta, fazem delas uma presença constante em nossa memória.

Conheci, nos doces tempos em que atuei em Goiânia (GO), na qualidade de professor cofundador da Universidade Federal de Goiás (UFG), justamente nos dourados anos do Grupo de Escritores Novos (GEN), um andarilho uruguaio de nome Felix Carvajal: olhar distante, absorto, usava óculos de grossas lentes, carregava o mínimo de bagagem, embora nunca se separasse do grosso volume das Obras Completas de Miguel de Cervantes (1547-1616), sua apreciada bíblia estético-literária. Excelente conferencista, sempre com respostas na ponta da língua. Certa vez, queixei-me de uma dorzinha de cabeça e ele prontamente me retrucou:

- " Não se lamente! Que queria do mundo? A saúde e a fama de um Pelé? Lembre-se de que na vida não se pode ter tudo!"

Os leitores jamais poderiam imaginar a celeuma que esse senhor causou naquela cidade. Nem lhes conto! Foi aquilo a que os anglófonos chamam de "happening". E tudo se passou da seguinte forma: Um belo dia, um dos membros do GEN, de forma muito hospitaleira, porém imprudente, resolveu convidar aquele andarilho a participar de uma das suas habituais reuniões, espécie de sarau assinalado por declamações de poesias da lavra daqueles jovens poetas, além de vários cantos magistralmente acompanhados por um exímio violonista. Autêntico abadessado! Não me lembro bem o nome de quem tivera a imprudente idéia de passar a palavra, no último intervalo daquela festança, ao ilustre desconhecido que sempre se mostrara bastante extrovertido. Vejamos como aquela insuspeitável figura de disco voador, procedente das bandas de Montevidéu conseguiu acabar tão animada reunião. Eis aqui, em resumo, o teor de sua desconcertante fala, após a melodiosa e retumbante saudação: "Buenas noches mis hermanos de Goiás!"

E, logo em seguida, saiu-se com esta: "Três coisas eu sempre detestei em toda a minha vida, a primeira nas pessoas dos sacerdotes [entendem-se quaisquer porta-vozes das diversas religiões] porque eles abusam do nome de Deus a segunda: os poetas porque eles abusam da palavra poesia, chegando, às vezes, até ao crime de profaná-la, espécie de lesa-cultura. Finalmente, a terceira, isto é, reuniões como esta, porque elas falam mais ao corpo [os sentidos] do que à própria alma. Por exemplo: durante o tempo em que aquele declamador nos transmitia uma mensagem poética, este senhor aqui, ao meu lado, mastigava chiclete, outro piscava o olho para uma moça ao lado, aquele outro comia amendoim bebericando qualquer coisa, além de muitos outros completamente detraídos. Desta forma, esta festa que deveria ser uma manifestação apolínia, não passa de um simples banquete dionisíaco!..." Não houve aplauso. Silêncio sepulcral! Depois daquilo, os donos da festa e seus pressurosos convidados foram saindo, à prestação, tomando o rumo da escada e, ao descerem, não sabiam se riam, choravam ou exorcizavam!