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Por um estilo de vida
Eduardo J. S. Honorato E Denise Deschamps, domingo, 22 de setembro de 2013
Por um estilo de vida
Com o modelo americano de família perfeita, o filme "Amor Por Contrato" constrói uma crítica ao consumismo desenfreado e à compra de marcas como símbolo de status e felicidade.

Com a estreia no Brasil apenas no final de 2010, Amor por Contrato não foi um grande sucesso de bilheteria, (DIVULGUE SUA ESCOLA EM NOSSA JANELA), apesar de ter no elenco nomes como David Duchovny e Demi Moore. O filme não despertou grandes comentários, mas traz possibilidades de reflexões bem importantes.

Logo no início do filme não será incomum se o espectador se incomodar com algo nas cenas. Até que se dissipe este incômodo e fique claro o motivo, é possível até irritar-se com tanta "perfeição familiar". No resgate da história americana, o pós-guerra trouxe uma necessidade de afirmação do "estilo de vida americano". A família perfeita com pai, mãe e um casal de filhos, vivendo o sonho americano de consumo, que se propagou pelo mundo inteiro. Esta fantasia ainda existe nos dias de hoje, por mais que pesquisas apontem para novas formas familiares. A composição perfeita do retrato tem mais laços afetivos do que na vida real poderemos ver. Tanta perfeição que irrita, e que deve ser oriunda da nítida "falsidade" que existe nesses vínculos de afeto distinto.

A abordagem principal passa pela crítica ao consumismo desenfreado como busca pela felicidade. Um fenômeno muito conhecido das sociedades capitalistas. No transcorrer do filme, deixa pontos diversos para outras tantas reflexões. Poderíamos pensar logo de partida no conceito de família nuclear como centro que carrega a estrutura social que forma as relações de mercado, no próprio casamento pelo viés do patrimônio e composição dos laços econômicos e despido de toda a sua carga romântica. A família Jones tem uma tarefa bastante específica, um marketing de marcas que é levado ao cotidiano e intimidade dos laços que vão formando em seu novo bairro. Interessante logo ao começo do filme, quando sua supervisora, ao criticar o desempenho do pai, Steve (David Duchovny), diz a ele que é preciso encontrar seu "instinto assassino", levando a ver o mundo das vendas como algo que paira em um vácuo da ética. A mãe, Kate (Demi Moore) traz ao espectador uma boa reflexão do papel central da mulher atual nas relações econômicas de base. Ela é a "boss" da célula de propaganda formada por essa família.

Steve e Kate são os pais de uma família típica americana, cuja falsa composição perfeita é utilizada como estratégia de marketing para o consumo

Durante os últimos anos, a palavra "marketing" assumiu grande importância no vocabulário social. Marketing coletivo, político, social, pessoal. Vender é o lema dessa sociedade neoliberal, em que "ser é ter". Vender, e "SE" vender faz-se necessário, como prática quase que de sobrevivência. Não se vende um produto, se vende um estilo de vida, uma forma de comportamento compulsivo com base em valores que são subjetivos, e ao mesmo tempo, bem concretos. Ter um produto significa ter supostos valores "morais e sociais" atrelados a ele.

Não há nessa família nenhuma construção de afeto e de alguma maneira a competição entre eles está dada pelo índice em vendas que cada um incentiva, naquilo que chamam de "onda" de consumo, fomentada por eles por meio da inveja de seus novos conhecidos, quer sejam os vizinhos ou colegas de escolas dos filhos Mick (Ben Hollingsworth) e Jenn (Amber Heard). Não vendem diretamente algum produto, mas sim uma "tendência" que é dada pela própria imagem de "bem-sucedidos" que impõem em seu novo meio ambiente, mostram-se a ele, felizes e realizados. Um real totalmente virtual, inclusive pelas fotos espalhadas pela casa, absolutamente perfeitas e lindas, assim como a própria casa, que faz suspirar a muitos de nós, espectadores dessa grande publicidade.

DURANTE OS ÚLTIMOS ANOS, A PALAVRA "MARKETING" ASSUMIU GRANDE IMPORTÂNCIA NO VOCABULÁRIO SOCIAL. VENDER É O LEMA DESSA SOCIEDADE NEOLIBERAL, EM QUE "SER É TER"

Podemos verificar os fenômenos dos vínculos familiares e a família nuclear como a grande célula de sustentação das relações de consumo, uma crítica direta que pode ser mais elaborada por muitas das correntes que postulam, por exemplo, que existiria na abordagem da Psicanálise, uma defesa do centro das relações capitalistas. Ao modelo do Édipo, a filha Jenn, bastante fixada em relações com homens mais maduros, chega a tentar seduzir seu "pai" emprestado, sofrendo diretamente a interdição da mãe, Kate, que proíbe essa investida. Ela desliza então o desejo, envolvendo-se mais adiante com um dos vizinhos, homem casado e muito mais velho do que ela. Cai em uma história de sedução, para ser abandonada mais adiante bem ao estilo Beleza americana, iniciação de uma jovem, em que a relação com a figura paterna ocupa um laço frouxo, no centro de sua formação de vínculos.

Aos poucos essa família-propaganda vai criando verdadeiras ondas de consumo na comunidade emergente na qual foi inserida, tudo isso sob a batuta firme dos gráficos apresentados por KC, a poderosa supervisora, que estimula as estratégias de inserção de produtos, até que se veem diante de questões éticas tais como a qual público tal produto foca, mesmo que contenha em si a proibição, como a bebida alcoólica que é passada de uma forma que obviamente chama o público juvenil para seu uso. O consumo de produtos como meta a ser atingida começa a esbarrar nas relações que vão construindo pelo caminho. É aqui que vemos no falso pai, Steve, algum traço de um questionamento ético em relação às ações que empreendem, até mesmo por um inesperado afeto que se ergue entre ele e Kate, sua esposa na farsa engendrada.

FREUD NOS DIZ EM SEU TEXTO PSICOLOGIA DOS GRUPOS E ANÁLISE DO EGO QUE "OS SENTIMENTOS DE UM GRUPO SÃO SEMPRE MUITO SIMPLES E MUITO EXAGERADOS, DE MANEIRA QUE NÃO CONHECEM A DÚVIDA NEM A INCERTEZA"

Caberá aqui a pergunta do quanto somos, muitas vezes, cabides de propaganda de alguns produtos. Quantas horas de trabalho gastamos para dizer ao mundo que trabalhamos com sucesso e retorno financeiro? Isso faz lembrar algumas manchetes de jornais que chocaram o mundo quando lemos sobre sujeitos que ante a derrota financeira, súbita falência, atacam a si mesmos identificados então com o fracasso, algumas vezes pelo próprio ato de "assassinato" contra si mesmos, atacam o que oprime, apontando para o que diz Freud em seu magistral texto sobre luto e melancolia, que o suicídio é traduzido por um ato violento contra um objeto introjetado, minando até mesmo a forte corrente das pulsões de autoconservação.

Freud nos diz em seu texto Psicologia dos Grupos e Análise do Ego que "os sentimentos de um grupo são sempre muito simples e muito exagerados, de maneira que não conhecem a dúvida nem a incerteza". Esse aspecto nos é apresentado no filme de maneira bastante evidente, principalmente perto de seu desfecho. O grupo social e suas marcas de prestígio ficam acima de outros aspectos mais importantes, até mesmo da importância da vida. Os fatos que essa inserção de publicidade irá desencadear acabam por finalizar abruptamente a tarefa dessa célula de propaganda insólita. O roteiro do longa, com essa ideia original, nos põe a pensar sobre essa possibilidade como um fato provável, talvez porque um pouco de cada um de nós se reconheça na trama do jogo do consumo ao qual somos submetidos, ao mesmo tempo em que também somos agentes ativos no cotidiano. "A ideia é que somos cúmplices da definição que o outro faz de nós. O sistema de relações humanas é o doente" (Pavlovsky, E).

O padrão ideal esbarra nas relações desta família que desperta a inveja e o espírito consumista de seus vizinhos, extrapolando todos os limites da propaganda

Podemos pensar nos elementos de contágio e sugestionabilidade que Freud cita a partir das teses de Le Bon como um forte condutor nas resoluções que parecem individuais, mas que pertencem à ordem dos fenômenos grupais. Esse sentimento de pertencer a determinado grupo é algo que impõe ao sujeito certo entorpecimento de sua capacidade crítica. Alguns compradores compulsivos podem nos exemplificar muito bem tudo isso, quando narram o impulso ao comprar, e ao sentimento posterior de inutilidade do ato, muitas vezes acompanhado pelo traço de culpa e vergonha. O objeto tão desejado não cumpre o prometido, deixa mais uma vez exposta a sempre presente constatação da solidão de cada ser. Mesmo quando pertence como símbolo a um determinado grupo social, nenhum produto é capaz de anular a constatação já senso comum de que nascemos e morremos sós, e que nesse meio-tempo, talvez possamos pensar como Freud que "... nossa atenção será atraída em primeiro lugar por uma consideração que promete levar-nos da maneira mais direta a uma prova de que os laços libidinais são o que caracteriza um grupo".

MESMO QUANDO PERTENCE A UM DETERMINADO GRUPO SOCIAL, NENHUM PRODUTO É CAPAZ DE ANULAR A CONSTATAÇÃO DE QUE NASCEMOS E MORREMOS SÓS

Até que ponto nossos laços sociais constroem um número tão grande de máscaras, algumas delas absolutamente desnecessárias, escolhas amargas que pagamos com alto preço de perda de autonomia e liberdade, algumas delas se colando de tal maneira à face que impossibilitam um questionar e uma potência de transformação. Nesses papéis que vamos aceitando ao longo da vida, investimos libido e depois acabamos prisioneiros em suas manutenções. Embora seja a escolha de cada um, perde-se a dimensão da libertação, sempre possível. "Eu quero uma casa no campo...", mas nossa principal dimensão é constituída pelo tecido social que vamos formando pelo entrelaçado dos afetos, qualquer ameaça de rompimento fala a algo que também é construtor de uma identidade, já nascemos repletos de inscrições, a começar pelo "nome de família", identidade patrimonial.

Nossa virtual família do filme aprende na pele que o afeto é um imperativo do sujeito, e em determinado momento do longa, chegamos quase a esquecer que não são uma família como outra qualquer, obviamente também com seus silêncios não ditos, afastamento emocional e negação. Até mesmo o desconhecimento da homossexualidade de um dos filhos acaba por remeter o espectador a algo que não é ausente em muitas famílias com as quais convivemos, e em muitos aspectos, a de cada um de nós.

O consumismo desenfreado imposto à família levanta questionamentos éticos ao longo da trama, causando dor e afastamento emocional

Não podemos pensar nesse filme apenas como uma crítica. De alguma forma perceberemos que nem seus formuladores tiveram essa pretensão, sabiam, e deixaram isso inscrito, que estavam "implicados" no objeto da crítica, como apontamos logo ao início deste texto. Na terra do consumo, não podemos pensar em um sujeito não atravessado por tão fortes marcadores sociais. Fica ao final a certeza de que estamos todos ali, de alguma maneira, e de que em algum momento, o que é realmente importante se perde um pouco em nossas vidas. O que sentimos que somos e o que representamos pairam em um espaço de dúvida. Nossas máscaras e papéis nos pertencem, são concomitantemente prisão e escolha, amadas e repudiadas. Amadurecer, algumas vezes, é olhar-se ao espelho e não saber mais o que é a face e o que é a máscara, nessa mistura subjetiva que constitui um sujeito. Alguns quedam prisioneiros e viciados em suas mais virtuais máscaras. Kate e Steve terão que dar conta disso e pensar no real das relações, naquelas que também inserem os afetos em um campo social.

Eduardo J. S. Honorato - Psicólogo e psicanalista.

Denise Deschamps - Psicóloga e psicanalista.

 
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