O texto: "O MM. Juiz de Direito da vara supra manda que o oficial de justiça avaliador abaixo nominado, cumpra o determinado no despacho judicial abaixo transcrito.despacho judicial/complemento intima-se a vítima acima, dando-lhe ciência de que foi colocado em liberdade provisória, o acusado J., conforme determinação judicial."
Maria do Socorro (nome fictício) é uma bela jovem de 23 anos e cabelos lisos e negros quanto o de Iracema, a personagem do romancista José de Alencar (1829/1877). Ela trabalha como babá em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a 480 quilômetros de Janaúba, no Norte de Minas, onde deixou as duas filhas, de 7 e 8 anos, aos cuidados da avó. Veio tentar a sorte na cidade grande e, todos os dias, quando sai do serviço, deseja chegar em casa e encontrar uma carta das crianças. Na última semana, foi avisada pela tia, que mora com ela, de uma correspondência entregue em seu nome. Feliz, não escondeu o sorriso. Minutos depois, a alegria deu lugar à tristeza, pois leu no papel timbrado do Fórum Desembargador Pedro Viana o seguinte: "Intime-se a vítima, dando-lhe ciência de que foi colocado em liberdade provisória o acusado J., conforme determinação judicial".
J., morador de Santa Luzia, é responsável pelo maior pesadelo de Maria: "Fui vítima de uma tentativa de estupro na zona rural, em 2006". Três anos depois do crime, sem querer acreditar no que leu, pediu ajuda a um amigo advogado. Num linguajar irônico, ele traduziu sua opinião: "Corra que o tarado vem aí. O estado não tem condição de lhe proteger e a alerta para se virar". Com medo de sair de casa, a jovem teme ser perseguida pelo suspeito. Conta que, há poucos dias, foi ameaçada por telefone. "Uma voz disse que o réu era pessoa de boa gente e falou para eu tomar cuidado". E, após um longo suspiro, perguntou a si própria: "Por que o estado manda esse tipo de carta?".
O juiz José Martinho Nunes Coelho, titular da 3ª Vara de Execuções Penais de BH, esclarece, sem conhecer o caso concreto de Maria, que o comunicado é uma imposição da Lei 11.690, em vigor desde junho de 2008 e que alterou parte do Código de Processo Penal. Com isso, o parágrafo segundo do artigo 201 ficou com a seguinte redação: "O ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem".
O magistrado avalia que a mudança foi importante porque muitas vítimas diziam que eram ouvidas em cartório e, depois, não recebiam mais informações sobre o processo. Porém, o juiz diz que, caso a vítima entenda estar ameaçada pela liberdade do suspeito, ela deve procurar as autoridades. É isso que fará a jovem do Norte de Minas, pois ela recorda que J.R. foi preso, a pedido do Ministério Público, por ter ameaçado uma testemunha do processo. "Estou preocupada. Tenho medo de que ele volte."
Em janeiro de 2007, Maria foi com duas amigas e dois rapazes a um forró perto de BH. "O dia já estava claro quando saímos de lá e um dos homens, que era motorista, deixou as colegas e o outro em casa. Disse que me deixaria também, mas entrou numa estrada e falou que iria fazer o que quisesse comigo", conta. Ela acrescenta que conseguiu correr, mas foi perseguida e levada novamente para o veículo. "Ele puxou meu cabelo e me ameaçou de morte. Arrancou o carro. Eu, sem pensar, pulei do veículo em movimento. Consegui entrar numa casa à margem da estrada e pedi socorro", lembra Maria, que deixou Janaúba, onde passou fome e estudou até a 4ª série, para dar uma melhor condição de vida às filhas: "Vim para vencer na vida. Não para ser humilhada".
O juiz Christian Garrido, de Santa Luzia, esclareceu que o mandado de prisão preventiva foi cumprido em janeiro. O advogado do acusado ajuizou um pedido para revogar a prisão sob a alegação de que J. não atrapalhou o andamento do processo. "O MP deu parecer favorável ao pedido do advogado. O rapaz não cometeu nenhuma outra infração, é réu primário, tem domicílio certo e ocupação lícita. Ele trabalha há 25 anos numa empresa de Vespasiano. Entendemos que pode responder a acusação em liberdade, até porque ninguém pode ser considerado culpado até serem esgotados todos os recursos".
Em relação ao artigo, avaliou ainda que a intenção do legislador, "seja qual for a natureza do crime", é deixar a pessoa informada sobre o processo. "Sabendo do andamento, ela pode se precaver, caso se sinta ameaçada, e procurar o Judiciário e relatar os fatos, o que pode motivar outra prisão preventiva."
"Proteção"
A Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds) informa que Maria do Socorro pode procurar o Programa de Proteção às Testemunhas Ameaçadas de Morte, mais conhecido como Pró-Vita. O projeto, atualmente, assiste 68 pessoas em Minas Gerais. A superintendente de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos do projeto, Sílvia Gusmão, informa que o primeiro passo de quem se sente ameaçado é procurar o Ministério Público, o Judiciário ou a Polícia Civil. "Também é possível o pedido de inclusão do próprio interessado. Mas, normalmente, é a autoridade que encaminha a solicitação para o conselho deliberativo do Pró-Vita. Conversamos com a vítima ou testemunha e explicamos as regras, pois haverá restrição da liberdade. A pessoa, por exemplo, muda de endereço. Nunca tivemos uma perda", detalha Sílvia.
O Pró-Vita mineiro é referência no país e recebe pessoas de outros estados. "A segurança dela e da família fica sob nossa responsabilidade. O beneficiado ganha uma ajuda financeira para pagar aluguel, por exemplo, além de uma espécie de contribuição mensal. O valor depende de cada caso". A especialista acrescenta ainda que o beneficiário fica pelo menos dois anos no programa. Porém, pode durar bem mais tempo, pois a proteção não termina enquanto o processo não é encerrado.
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