Uma recordação de infância povoou o imaginário de Raquel Melilo [foto] durante anos. Muitas das vezes em que ia à casa dos avós, no bairro de Santa Tereza, Zona Leste de Belo Horizonte, ouvia, invariavelmente, a mesma resposta quando perguntava pelo avô: “Ele está jogando no bicho”.
Já como estudante da UFMG, decidiu canalizar essa memória em um estudo acadêmico. Sua monografia de conclusão do curso de Geografia abordou a percepção popular sobre o jogo que tanto cativava o avô, relacionando-a com a dinâmica territorial da atividade.
Instituição que resistiu na ilegalidade ao longo da maior parte da sua existência – que já dura mais de um século –, o jogo do bicho compõe a identidade coletiva das comunidades e serve de parâmetro para análises socioespaciais.
“O jogo do bicho ajudou a construir a identidade do bairro Santa Tereza em relação à metrópole belo-horizontina. Além do jogo, o caráter boêmio, a arquitetura antiga de algumas casas, a ausência de prédios altos e a pracinha [a Praça Duque de Caxias] formam o cenário pitoresco do bairro”, exemplifica Raquel, que atua como professora de Geografia na rede particular de ensino em Belo Horizonte.
Encanto na ilegalidade
O jogo do bicho é interpretado pela lei brasileira como contravenção penal (crime menor ou infração para a qual a pena é mais leve). Raquel Melilo acredita que esse é, contraditoriamente, um fator ao qual se pode atribuir o crescimento da atividade no país.
“Os bicheiros tiveram que se organizar ao longo dos anos para criar um mecanismo sólido que favorecesse a sobrevivência da jogatina na ilegalidade. Além do mais, se fosse legalizado, o jogo perderia seu encanto”, observa.
O mapeamento dos dados coletados por meio da pesquisa de campo (que compreendeu, entre outras ferramentas, a aplicação de questionários aos moradores) permitiu elaborar uma espacialização dos pontos de jogo do bicho no bairro.
A autora atestou que existem pelo menos oito casas do ramo, mas alguns dos moradores com quem conversou declararam que sabem do funcionamento de até dez. Autoridades policiais também foram consultadas. Eles justificaram a permanência da atividade alegando que os pontos, quando fechados pela polícia, reabrem no dia seguinte, muitas vezes travestidos de pequeno comércio ou loja de serviços.
Uma das conclusões do trabalho foi a de que a esmagadora maioria dos adeptos do jogo do bicho em Santa Tereza é composta pelos moradores mais antigos. “Os entrevistados com opinião positiva sobre o jogo têm mais de 50 anos. Geralmente conhecem a família do bicheiro e garantem que são pessoas de boa índole. Há uma ligação afetiva, de respeito”, descreve a geógrafa.
Para ela, a adesão ao jogo também está alicerçada na confiança em relação à sua lisura: “O jogo do bicho não passou pelo processo de informatização, tudo é feito à maneira antiga. Os que jogam confiam no resultado e na entrega do prêmio, para a qual não existe burocracia”.
De acordo com Raquel Melilo, a participação de pessoas de faixas etárias díspares é contrastante. Enquanto os mais velhos foram capazes de auxiliar na localização dos pontos, alguns jovens tampouco têm conhecimento de sua existência. Para a autora, é real a possibilidade de que essa falta de interesse resulte no fim da modalidade: “Percebo que o hábito do jogo do bicho não vem sendo passado às novas gerações. Por isso, creio que ele pode caminhar para a extinção nas próximas décadas”, finaliza.
Monografia: O jogo do bicho no bairro de Santa Tereza-BH: compreensão do processo de territorialização e espacialização da contravenção
Curso: Geografia
Data de defesa: 21 de dezembro de 2012
Orientadora: professora Marly Nogueira