Nos arquivos da minha memória, sempre repletos e renovados, creio que o fel e o mel às vezes se justapõem e, no constante exercício de recordar, faço todo o possível para que só me venham à tona apenas as delícias que me façam reviver aqueles dourados tempos da mocidade.
Uma das minhas gratas lembranças refere-se ao período dos meus estudos em Buenos Aires, metrópole de belezas urbanas e múltiplos sortilégios, de apelos ao corpo e espírito. Dioniso e Apolo ali vivem sempre de braços dados, pois são o verso e reverso da mesma moeda, o que vale dizer, fazem parte do viver humano.
Aquela capital sempre me pareceu uma verdadeira Londres, charmosa e bem cuidada, inserida num cantinho subtropical. Esbanjava sortilégio. Ali fui feliz numa quadra existencial, época de semear sonhos e matar a sede de aprender. Fui, por isto mesmo, um assíduo freqüentador da Biblioteca Nacional (fundada em 1810), situada na Calle México, nº 564. Considerada uma das mais ricas biblioteca da América Latina, pois, quando a freqüentava contava com o acervo de mais de 650.000 volumes. Ali era o refúgio intelectual onde eu sempre buscava subsídios para alicerçar o meu incipiente edifício cultural. Fui leitor assíduo e ávido. Dela eu saia cada vez mais enriquecido, bem informado. Eis aqui uma bela lição de vida que nunca mais me saiu da lembrança. Certo dia, logo bem cedo, ao adentrar aquele espaço, santuário do saber, tesouro da cultura argentina e iberoamericana, dou com os olhos num cartaz com o seguinte apelo manuscrito:
"O senhor diretor gostaria de poder contar com a boa vontade de algum consulente para que lhe faça a leitura de algumas obras. Antecipadamente agradecido!"
Imagine, meus caros leitores, quem era o então diretor daquela vetusta instituição? Nada mais, nada menos do que o já famoso escritor e pensador Jorge Luis Borges (1899-1986) que já andava com a visão bastante prejudicada, ou seja, quase cego... Não hesitei um minuto sequer e logo me apresentei ao Vice-diretor José E. Clemente que, por sua vez, me apresentou à secretária que acabava de chegar. E, assim, por mais de uma vez, li trechos e mais trechos para aquele renomado escritor, mas não me recordo muito bem dos títulos das obras e dos autores que lhes levei aos ouvidos, sempre curiosos e atentos, cujo espírito sequioso sabia assimilar tudo aquilo que eu ia lendo. As vezes repetia o trecho, conforme o seu pedido. Nos intervalos de minhas leituras, costumava ditar alguns comentários, lúcidos e enriquecedores, à sua exímia datilógrafa. Se não me engano, a maioria dos livros que meus olhos perlustraram eram textos de "Viajeros extranjeros" que visitaram a Argentina no século XIX.
Aquela experiência serviu-me muito para revalorizar um dos nossos tesouros sensoriais: a visão! Infelizmente, naquela época, eu conhecia apenas um livro de Borges, não muito citado: El Aleph (1949) e, por isto mesmo, ainda não possuía maiores informes para fazer-lhe perguntas sobre a sua vida e obra: Perdi, portanto, uma boa oportunidade de colher, diretamente dos lábios de uma celebridade latinoamericana, uma testemunho oral que haveria de enriquecer os meu arquivos biográficos e, por conseguinte, os futuros textos de minhas memórias. Contudo, ainda me soam aos ouvidos as suas palavras, brandas e reticentes: "De que país é o senhor? O seu sotaque parece de galego!..."
Até hoje, não sei se aquela assertiva fora um elogio ou mero exemplo de ironia! Pois bem, a partir daquele encontro e da observação - pelo sim ou pelo não - fiz o máximo esforço para assimilar o sotaque portenho e disso nunca me arrependi, pois ele é muito mavioso e gostosamente gauchesco!
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