O filósofo e estudioso do iluminismo Renato Janine Ribeiro repensa a pena de morte à luz da morte de João Hélio.
RENATO JANINE RIBEIRO ESPECIAL PARA A FOLHA
Escrever sobre o horror em estado puro: assim vivi o convite
para participar deste número do Mais!. É insuportável pensar
no crime cometido contra o menino João Hélio. E é nisso que
mais penso, nestes dias. Não me saem da cabeça duas ou três
coisas. A primeira é o sofrimento da criança. Se há Deus, e
acredito que haja, embora não necessariamente antropomorfo, como admite Ele esse mal extremo, gratuito,crudelíssimo?
Se a alma ou o espírito tem um destino após a morte, chame-
se esse de juízo eterno ou de uma série de reencarnações,
como poderá esse infeliz menino ser recompensado pela vida
que lhe foi ceifada, não apenas tão cedo, mas, além disso, de
modo tão bárbaro?
Essas são questões religiosas, ou melhor, de fé. E quanto aos
assassinos? A outra coisa que não me sai da cabeça é como
devem ser punidos. Esse assunto me faz rever posições que
sempre defendi sobre (na verdade, contra) a pena de morte.
Anos atrás, me convidaram a escrever um artigo para uma
revista de filosofia contra a pena de morte. Perguntei então:
mas alguém escreverá a favor? E me responderam que era
possível, por que não? Acabei escrevendo meu artigo (contra
a pena capital), mas este caso horrível me faz repensar ou,
melhor, não pensar, sentir coisas distintas, diferentes.
TORÇO PARA QUE, NA CADEIA, OS
ASSASSINOS RECEBAM SUA PAGA TORÇO
PARA QUE A RECEBAM DE MODO
DEMORADO E SOFRIDO
Se não defendo a pena de morte contra os assassinos, é apenas porque acho que é pouco. Não paro de pensar que deveriam ter uma morte hedionda, como a que infligiram ao pobre menino. Imagino suplícios medievais, aqueles cuja arte consistia em prolongar ao máximo o sofrimento, em retardar a morte. Todo o discurso que conheço, e que em larga medida sustento, sobre o Estado não dever se igualar ao criminoso,
não dever matar pessoas, não dever impor sentenças cruéis nem tortura -tudo isso entra em xeque, para mim, diante do dado bruto que é o assassinato impiedoso.
Torço para que, na cadeia, os assassinos recebam sua paga torço para que a recebam de modo demorado e sofrido.
Conheci o sr. Masataka Ota,pequeno empresário cujo filho pequeno foi assassinado. Entrevistei-o para meu programa de ética na TV Futura (episódio "Justiça e Vingança"). Masataka perdoou os assassinos, isto é, embora pudesse matá-los, não o fez.
Quis que fossem julgados e lamenta que já estejam soltos, poucos anos após o crime hediondo, mas ele é um caso raro -e admirável- em não querer se vingar, em não querer que os assassinos sofram mais do que a pena de prisão. Confesso que não seria a minha reação.
Quem é humano?
Penso -porque ainda consigo pensar, em meio a esse turbilhão de sentimentos- também que há diferentes modos de impor a pena máxima.
A punição com a morte se justifica ora pela gravidade do crime cometido,ora pela descrença de que o criminoso se possa recuperar. No caso, as duas razões comparecem. Parecem irrecuperáveis, e seu crime é hediondo. Não vejo diferença entre eles e os nazistas.
Creio que só um insensato condenaria as execuções decretadas em Nuremberg. Há, hoje, quem debata se Luís 16 deveria ou não ter sido guilhotinado: dizem alguns que o melhor seria reduzir o último rei absoluto da França a um cidadão privado, um pouco como a China (curiosamente, campeã em execuções) fez com Pu Yi, seu derradeiro imperador. Mas Luís era culpado apenas de ser rei. Pessoalmente, era um homem bom. Os nazistas foram culpados do que fizeram. Optaram pelo
mal. Como esses assassinos.
Em países como os Estados Unidos, a demora na execução é ela própria uma parte -talvez involuntária- da pena. Alguém passa 20 anos no corredor da morte, e é executado quando já pouco tem a ver com quem foi. Na Inglaterra, antes de abolir a pena de morte, era diferente: dois ou três meses após o crime, o assassino era enforcado.
Nos dois países, a garantia de todos os direitos de defesa ao réu faz parte, por curioso que pareça, da engrenagem que diz ao acusado: você terá todos os direitos, mas não escapará.
No Brasil é diferente. Não temos pena de morte, na lei. A Constituição a proíbe. Mas provavelmente executamos mais gente que o Texas, o Irã ou a China. É que o fazemos às escondidas.
Quando penso que, desses infanticidas, os próprios colegas de prisão se livrarão, confesso sentir um consolo. Mas há algo hipócrita nisso.
Se as pessoas merecem morrer, e se é péssimo o Estado se igualar a quem tira a vida de outro, por outro lado é uma tremenda hipocrisia deixar à livre iniciativa dos presos ou aos justiceiros de esquina a tarefa de matar quem não merece viver.
Abrimos mão da responsabilidade, que pode ter uma sociedade, de decidir -no caso, quem deve viver e quem merece morrer. Tudo isso traz questões adicionais. É-se humano somente por se nascer com certas características? Ou a humanidade se constrói, se conquista -e também se perde?
Alguém tem direito, só por ser bípede
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