Tenho um amigo pescador, passarinheiro, que trabalha vendendo coisas numa das lojinhas lá do segundo andar da Estação Rodoviária. Seu apelido é Índio. Conta-me ele que nos fins de tarde, quando está apoitado no meio do rio procurando fisgar algum dourado, às vezes encosta a vara de carretilha no remo que atravessa no meio da canoa e fica observando a ponta da vara, procurando ver se há algum peixe dando sinal de estar mexendo na isca.
Naquele fim de tarde silencioso o rio cuja visão se perde nos limites do horizonte parece ir se encontrar com o disco do sol cuja incandescência àquela hora simula estar se apagando. E então dos recônditos da memória vem-lhe a figura da mãe que teve e já há algum tempo falecida. Ela se chamava Flausina. Diz ele que era índia de uma tribo que ele não sabe bem o nome, mas é parecido com surano, que eram índios de baixa estatura.
Onde ela nasceu ele não sabe informar, nem ela o sabia. Certa vez disseram a ele, se a mãe não tem registro de nascimento, ela então não existe. Levou-a a Ubarana. No cartório, com aquela mulher, pediu ao cartorário que a registrasse. Logo a confusão se estabeleceu. Não sabia informar o sobrenome, nem onde havia nascido.
Quase o cartorário registra Flausina como filha do seu filho. Tinha ela 1,53m de altura, casou-se aos 12 anos, quando já tinha sete filhos, morreu o marido e ela passou a viver uma espécie de segundo casamento com um cidadão que trouxe consigo mais oito, totalizando 15 crianças naquela casa. E ele morreu. A pequena índia morando as margens do córrego do Sotero, próximo a Onda Verde. A região era totalmente selvagem. Morando naquele rancho de sapé, imaginem a energia e a coragem para controlar 15 crianças.
O índio me conta que ela nunca discriminou, separando os dela com os do falecido. Para controlar a todos estabelecia disciplina. Cada um tinha sua tarefa e todos trabalhavam nas roças vizinhas, na fazenda do Neca Medeiros, na do Jacinto de Melo, na do Capitão Joaquim Manoel, na Dona Zuina. Apanhar milho na colheita, catar algodão, participar do plantio, capinar o mandiocal, tratar dos porcos que criava e manter todas aquelas crianças higienizadas.
Contava com os mais velhos para agarrar os mais novos e obrigá-los a tomar banho. Criança pequena não gosta de tomar banho. O sol ia se pondo, quando todos terminavam o jantar. Agora é rezar todas no altar da Folia de Reis. Nada de acreditar em assombração, capeta, mula-sem-cabeça. Ela dizia que filho de Deus não acredita nessas coisas. Quando muito acredita na existência do saci, que não fazia mal a ninguém. Mal escurecia, todos na cama para acordar ainda no escuro, às 4 da madrugada.
Dia de festa era o dia que aparecida sucuri no pedaço e havia muitas que iam ao chiqueiro capturar porcos. Mal a sucuri se envolvia no animal apertando a laçada fatal, a molecada gritava pela mãe, que vinha com um machado e acertava a cabeça da sucuri.
Sucuri enrolada em presa não reage a agressão. Naquele dia e nos dias subsequentes era uma churrascada sem fim. Primeiro se comia o porco agredido, depois a suculenta sucuri.
Por isso o Índio afirma: “Sucuri não pega criança. Elas passavam no meio da gente para chegar no chiqueiro”.
A opinião do Índio é a mesma dos professores do Ibilce Dino Visoto e Arif Cais. Se alguém ficasse doente sempre tinha o remédio: ferida, barba pó de casca de barbatimão; verme, erva de santa maria; reumatismo, sucupira; tosse, fruto de gravatá; cólica, bálsamo; diarreia, chá de broto de goiaba.
Ela não admitia que se pedisse nada a quem quer que fosse: “Quem tem braço sadio comete pecado não trabalhando e se a gente trabalha ganha para viver”.
Antônio Pedro da Costa, o Índio lá da Estação Rodoviária, trabalha e muito, de acordo com o que sua mãe lhe ensinou. Ele emociona as pessoas quando narra a história da humilde mãe que teve e tem plena convicção da heroína que era ela. Flausina Carlos de Oliveira morreu em Rio Preto em 1985. Aposto com qualquer um que ela está no céu
Wilson Romano Calil
Médico, advogado e professor, vive em Rio Preto e escreve toda segunda-feira para o Jornal Bom Dia
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