Ela foi levada ao médico pela filha, filha aposentada como professora de uma pequena escola rural. A professora foi logo dizendo que trouxe a mãe para fazer alguns exames, pois ela nunca ia a médicos.

– “Mas ir pra quê? Se eu não preciso”.

A primeira pergunta que o médico lhe fez – com fisionomia de riso e jeito de menina travessa que a paciente apresentava – foi: “Quantos anos a senhora tem?”

A resposta foi: “99 anos e meio”.

“Então deve haver algum engano, porque eu não atendo pediatria”.

Ela não entendeu mas sorriu. Durante a consulta, um longo bate-papo. Dona Maria, embora pessoa de poucas letras, entende como ninguém de futebol, não perde um jogo pela televisão, já foi ver Pelé jogar e é corintiana fanática.

“Também só poderia ser corintina. Eu e o Corinthians nascemos no mesmo ano. Hoje vai jogar o Palmeiras. Se ele perder estará danado. A Portuguesa jogou ontem em Goiânia, mas, coitada, só jogou meio tempo, deve ter sido por causa do apagão. Essa minha filha aí, eu falei pra ela, você não ouve rádio como eu e fica sem informação. O tal de apagão foi no Brasil inteiro, e não só em Rio Preto, como você estava pensando. Que professora que você é se não tem informação?”

“Eles falam que as pessoas que nasceram há muito tempo lembram bem das coisas do passado e mal das coisas do presente. Eu me lembro de tudo, do passado e do presente. Minhas amigas já morreram quase todas, mas elas morreram muito antes de serem enterradas, porque quando a pessoa fica caduca e perde a memória praticamente já morreu”.

“De três coisas não gosto de falar: da morte, de doenças e velhice. Essa minha filha falou o seguinte: a senhora tem sorte, porque eu cuido da senhora. Porém, quando eu ficar velha quem vai cuidar de mim?”

“Fica tranquila, minha filha, quando você ficar velha eu irei cuidar de você.”

Olha, doutor, doença mesmo eu nunca tive e eu como de tudo, pé de porco, torresmo, de tudo. Só que eu como pouquinho, sempre comi pouco. Das comidas, as que eu mais gosto são peixe e bacalhau.”

Pois é, dona Maria, o tal bacalhau anda custando muito caro.

“Ah, eu recebo uma pensão de R$ 400 por mês e como eu não compro remédio, porque não preciso. Sobra dinheiro para comprar bacalhau. Um pouco que eu compro dura muito, porque eu como muito pouco.” “No ano atrasado me apareceu uma dor nessa perna aqui, minha filha me levou lá no postinho e um médico disse: é uma veia entupida. Eu respondi: não é. Como a dor não passou eu fui em outro postinho. O outro médico disse veia entupida.”

“No outro dia eu fui lá na Santa Casa. O terceiro médico disse, também, veia entupida. Então eu falei para ele: tira uma chapa, e ele falou: vou tirar só para agradar a senhora. Tirou e era osso trincado, quebrado. Aí me operaram e colocaram um parafuso. Eu até sonho em assistir às olimpíadas e o campeonato mundial de futebol.”

Dona Maria, e política? O que a senhora acha de política?

“Não aprecio: todos eles entram pobres e saem ricos.”

Dona Maria Barbosa mora lá no bairro São Deocleciano. Quem tiver o privilégio de conversar com ela estará conversando como uma jovem de 99 anos e meio, sadia, inteligente, otimista e principalmente corintiana fanática.

Wilson Romano Calil

Médico, advogado e professor, vive em Rio Preto e escreve toda segunda-feira para o jornal Bom Dia